Luísa Maita une sensualidade a belo repertório |
Tem sensualidade que soa bruta, arranhando pele, agredindo
nossa sensibilidade e deixando marcas indesejáveis. Excessiva. Repressiva. E
que assusta tanto quanto afasta porque não estamos preparados para tamanha efusividade,
para tanto alarde. Dose pouco justa na medida errada de nossa alma como peças
de um quebra-cabeça que não encaixam. Desmedida. Tem sensualidade que chega
mansinha, marcando a chegada com o toque da suavidade, eriçando pelos,
sublinhando peles. Permissiva. Libertária. Como uma ária dessas arquitetadas
pelas entranhas do autor e que envolve a gente com um poder de sedução que foge
do nosso controle. E simplesmente nos deixamos levar como se amansados por uma
inesperada brisa, daquelas que na varanda de um litoral tranquilo nos faz
cerrar as pálpebras e levitar. Unir música e sensualidade é um exercício pra
quem pode. Fazer desse dueto um elemento de levitação, sem a sombra da letargia
que nos deixa inertes, é magia e arte. Nesse laboratório sensorial, doses certas
de paixão pelo trabalho e “cientistas” alinhados a esse entregar-se fazem a
grande diferença. Fio da Memória,
segundo álbum da paulistana Luísa Maita é
isso, um fabuloso campo de experiência musical no qual a sensualidade é
utilizada de forma natural a serviço de nosso deleite. Somos cobaias rendidas e
bajuladas e, com certeza, adoramos isso.
Veja vídeo de “Around You”:
Luísa Maita quis
fazer um trabalho que percorresse o fio de nossa medula, ouriçando a epiderme,
e chegasse transparente e apaixonante em nosso cérebro para a degustação detida
e mais completa. E diferente do que fez no bom Lero-lero(2010), o primeiro da carreira, no qual explora uma veia
mais MPB e tradicional, mas com os toques de modernidades que veríamos nesse
segundo, a artista apostou em tons eletrônicos na linha tribal, jazzy e
dancehall, na verdade sinapses para sensações mais cruas propostas no disco.
Seguiu uma linha que a aproxima, só para se ter uma referência mais próxima,
aos movimentos iniciais da cantora Céu.
Busca nas batidas tecnos uma base para sua imersão nos toques brasís. Sim,
porque a eletrônica é um forte tempero para apimentar a relação com uma
sonoridade diversa, múltipla, que tem a cara escarrada e esculpida de nosso
Brasil brasileiro. Essa nação que tá sempre gestando em nossa memória e que por
um fio inquebrantável nos faz ser o que somos. A cantora de voz quente nos
convida para a festa no porão onde tambores e bpms agitam nosso coração, como
provoca na deliciosa “Porão”. “Quem me mandou pra festa do porão?”, questiona
ela. Quem mandou cutucar a onça com vara curta? “Quem chegou não pode sair,
quem entrou não pode voltar”, dita a hipnótica canção com arranjo de percussão
fervilhante. E é difícil sair mesmo desse lugar enfeitiçado em que Luísa com sua música nos enreda. O
jeito é dançar conforme a música.
Artista compôs oito das 11 músicas do disco |
E dançar conforme a música é estar preparado para momentos
de bipolaridade, onde a calma e a agitação, amarradas por um formato musical no
qual eletrônica e tambores formam belo par, se alternam. A música “Porão” é a
síntese da musicalidade de Fio da Memória
e seu Lado A, o lado mais dançante, que chama mansamente para a festa. E o
timbre macio, com afinação afiada de Luísa,
é quase um contraponto bestial para a produção esmerada e arquiteturas sonoras
criadas por ela, Tejo Damasceno, uma
das partes indivisíveis da super banda Instituto,
e Zé Nigro para as batidas
evocativas da dança. Exemplos de “Na Asa”, que abre o disco e a mais
descaradamente eletrônica de todas com seus sintetizadores envolventes, “Folia”,
com prevalência para o batuque em acompanhamento surpreendentemente para o
transe vocal da artista e a ótima “Around You”, cantada em inglês, um flerte
magnético com o candomblé e as pistas. Essas quatros canções mais agitadas comprovam
ainda o dom em evolução pra compor de Luísa
Maita, única autora de oito das 11 músicas do disco. Bom exemplo é “Folia”,
em parceria com Daniel Taubkin, que
incorpora bela poesia popular: “Se você nunca ouviu essa triste melodia que
ainda alegra esse quintal/Rezo para que um dia você tropece nesse samba e
mereça essa folia”.
À vontade, Luísa acertou no tom e na guinada |
As letras de Luísa
harmonizam também com o espírito da obra no Lado B de Fio da Memória, o lado do descarrego
sensual do disco que conta, com igual peso e medida, com os mesmos bons arranjos,
boas tramas sonoras e grandes músicos (entre eles Douglas Alonso, Fernando
Catatau, Jam da Silva, Rodrigo Campos e Zé Godoy) presentes no lado atiçado do álbum. Guitarras marcantes,
pitacos eletrônicos e elegância injetam organicidade e beleza a “Olé”, uma das
mais bacanudas do repertório, que tem letra reveladora do momento confiante da
artista: “Agora vou me aprumar e aqui ninguém vai me tirar o que é meu e o que
virá”. Tá certo, garota, o que é seu ninguém tira nem tem poder ou ousadia de
tirar. E essa sensualidade que reverbera no ouvido e aquece nosso coração se
mantém ativa e proeminente em outras lições de boa música de cadência suave e
alto poder sedutor. Casos de “Fio da Memória”, um lamento apaixonado e
apaixonante onde o casamento de cordas, sintetizadores e voz impressionam, e da
linda “Volta”, com poesia confessional e forte melodia. Não é fraca não essa
menina de lances surpreendentes. Se Fio
da Memória é uma guinada com relação a Lero-lero
é porque Luísa é afeita a mutações e novas experiências. E essa insatisfação
com o que já veio e o que virá garante vida longa a essa artista que faz de seu
atual momento uma ponta de lança para um futuro promissor. Siga o fio. E que
isso fique na memória.
Cotação: 4
Escute o fio da memória:
Linke-se ao fio da memória: