quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Diálogo aberto

Nesse mundo de poucas medidas, amizades desconectas e razões rasas, é saudável interagir com conteúdos que nos fazem sentir mais humanos e integrados às pessoas que resistem à mediocridade. E se existe um movimento invisível na Terra que nos empurra para o fundo de um lamaçal que tenta nos engodar nesse nó troglodita de ignorância, de duro desenlace, é bom que tenhamos as chaves dos quartos onde possamos entrar, respirar e nos enxergar. E a música tem esse poder de desatar nós, de criar essa comunhão com o que nos faz sentir bem, de conjugar sentimentos e levantar espelhos. O paraense Saulo e os amigos da Unidade buscam essa interação, abrindo flancos no meio dessa névoa cerrada produzida pelas rádios comerciais, e expondo uma visão confessional e honesta sobre esses dias que vivemos. E o que é melhor, sem perder a capilaridade do pop. O terceiro disco do artista e seus comparsas, Cine Ruptura (YB Editora/Natura Música), lançado em junho, exala frescor e uma doce positividade amparados em um discurso simples e sábio. Como uma reza voltada pra dentro da gente e que nos impele a puxar o freio diante desse cotidiano esquematicamente estressante.

Veja “Uma Música” em show ao vivo em Fortaleza:

https://youtu.be/DUXg13vnbpk

“Olhe sempre pela janela, mantenha os olhos sempre vivos/essa força no seu coração, sim essa força(...)Cada gota de transformação não é só uma gota”, de Uma Força

Saulo parece ser desses caras que procura brechas no breu. Como uma clareira. O pop de Cine Ruptura é um meio termo entre a desencanação do ótimo primeiro disco da turma de 2012, que leva o nome da banda, e a sofisticação de Quente (2014), o segundo. É um equilíbrio muito bem-vindo, desses que chega imperioso com a maturidade. E aí encontramos um músico e sua banda senhores de si, em artesanias que falam à alma. Descerra o pano logo enredando o ouvinte em um líbero empoderado por guitarras marcantes que emplaca façinho na cabeça de quem ama a liberdade, aliás o nome da canção: “Você tem todo o direito de tomar sua cerveja/de fumar o seu cigarro/de fazer sua cabeça/ sem ser importunado por quem quer que seja”. Assim começa o diálogo de Saulo. Como num criativo teatro de rua, propõe uma conversa aberta com o público explorando infusões radicais, como as nordestinas em “Terra Vermelha”, uma das mais fortes do álbum, que conta com a participação do talentoso Russo Passapusso, irmão de experimentações musicais criativas. Pé no chão, tambores na terra vermelha “cor do coração” chama pra roda essa fogueira sempre acesa que é nossa relação com o Brasil ancestral de negros e sertanejos que modelaram a cultura nacional.


Saulo e a Unidade: música antenada com o dia a dia
As letras, a maioria composta por Saulo, seguem uma linha que busca exatamente uma conversa que exige interação com o ouvinte. Se não, pra quê compor? As composições trazem uma visão eloquente do mundo, um discurso pacifista e generoso que ora alerta ora aconselha. Aconselhamentos sem qualquer tom moralista ou doutrinador. É um tom de ocupação, usando uma palavra da moda. Ocupação da consciência. “Olhe sempre pela janela, mantenha os olhos sempre vivos/essa força no seu coração, sim essa força(...)Cada gota de transformação não é só uma gota”, sugere no acolhedor reggaezinho de “Essa Força”. E essa espiritualidade em doses certas ainda é mais bendita na bela “Uma Música”, outra balada confessional, a mais descaradamente confessional e melodiosa do disco, raio X dos que envenena hoje em dia, mas com receita do antídoto embutida nela: “Às vezes é difícil falar, às vezes é difícil pensar na agonia do dia a dia e todas essas coisas que não param de crescer/ E um coração desnorteado, cansado não entende tanta covardia(...) Procuro um caminho confortável onde possa tranquilamente desatar os nós da minha garganta, isso é esperança. Cantar tem gosto vivo e é o contrário de morrer”. Cantar faz Saulo e a Unidade bem vivos e convincentes. Quem convence é Saulo Duarte (voz, violão, guitarra), João Leão (teclados, vocais), Klaus Sena (baixo, vocais), Beto Gibbs (bateria, vocais), Betão Aguiar (Guitarra), Tulio Bias (percussão, vocais), Igor Caracas (percussões, vocais).

Leveza e interação num disco para se guardar
Equilíbrio entre discurso e melodia e até entre o que é direto e o que faz viajar fazem de Cine Ruptura, que contou com produção inspirada do paulista Curumim, um trabalho sólido e encantador. Como não pensar assim quando confrontamos a bela interpretação de “Arrebol”, criação cativante e pouco conhecida de um barroco Dominguinhos valorizada no álbum por um arranjo finíssimo, com a imagética “Angorá”, de letra surreal, cantada num bom dueto com a incensada Ava Rocha, filha de Glauber Rocha: “Balão vermelho tingindo pele, suor e sombra, onde os gatos guardam moedas e madrugadas”. Tradição e modernidade cabem bem num cadinho, se a pretensão for deixada de lado. E talvez esse seja o grande segredo de Saulo e a Unidade em sua terceira incursão musical: buscar a leveza e a interação sem, para isso, precisar ser raso. A música pode sim ser radiofônica mantendo a integridade, a beleza e criatividade. Esse cara do Pará e os ótimos músicos que o acompanha são um exemplo que deveria ser seguido pela nova geração que, como eles, tem um pacto com a qualidade. Belo disco e a confirmação irrefutável de que temos um nome e arte talentosos pra guardar.

Cotação: 4

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