O brasiliense Túlio Borges mergulha na alma nordestina |
E daí que tem em Boa Vista um sentimento frouxo e
preguiçoso, carregado de cimento e non sense de derrubar mangueira pra não mais
varrer folhas, esse inocente adubo que cobre o piso e só reafirma o ciclo
educador e vivificante da natureza. Sempre que vejo isso acontecer, do chão de
concreto cercar um tronco cortado, tenho vontade de fixar uma lápide no local,
com o testamento escrito a ferro e raiva: “Aqui jazz aquela que de sombra e
verde refrescava essa paisagem” ou “Aqui jazz a falta de consciência de um pobre
e ignorante humano”. A tristeza que moldou esse sentimento é a mesma que
impregna a irônica e abrasiva “Coco do Pé de Manga”, canção com alma de Jackson
do Pandeiro e que faz de Batente de Pau de Casarão, de Túlio Borges, um desses
discos de lirismo brasileiro de grande poder de fogo. Pólvora que incendeia a
gente e que de tão Nordeste nos veste de sertão e paixão. Algo como um retrato
de nós mesmo que vez em quando, por uma iluminura, nos faz ver o quanto pecamos
em gestos falhos e retrocessos e o quanto amamos, quando assumimos
o que nós somos na raiz.
E então que aquele Coco, com rima e estrutura jacksonianas
assinado por Túlio e Jessier Quirino, conta que “as mangueiras tão de luto e as
mangas de sentimento. Derrubaram um pé de manga pra fazer um apartamento”.
Sanfona, zabumba, triângulo em ritmo cadenciado e arranjo inspirado derrama
toda sua vibrante nordestinice sobre um tema tão caro a quem tem o verde
impresso na retina. E Túlio Borges, explorando uma musicalidade exposta
voluptuosamente que nem seios e bundas em desfile de carnaval, remexe guardados,
influências e amizades num disco radicalmente poético e autoral. O cara é de
Brasília, cidade que deve muito a quem veio do Nordeste. Talvez por isso deixe baixar
o que de Nordestino há nele nesse doce álbum. E que faz matutar que se outra
vida ele viveu, foi sertanejo da mais fina cepa e vigor. Vira piauiense lindamente
em “Canção do Piauí Unido”, quando assume, em parceria com Climério Ferreira,
esse nascido lá mesmo, a geografia de ser de um estado muitas vezes apunhalado
por burros e brutos preconceitos e, vez em quando, ameaçado de ter seu
território dividido: “Então você quer dividir meu estado, cê quer partir meu
coração(...)/quer dividir meu estado, quer fatiar meu orgulho. É um direito que
tenho de ter orgulho de nascer piauiense”.
Veja Túlio Borges cantando "Bailarina":
https://www.youtube.com/watch?v=m5q1HXbGRg4&feature=youtu.be
E aí o ouvinte ouve e vê e que não é preciso ser nordestino
pra sentir que declarações de amor
são simplesmente declarações de amor e que elas são tocantes
quando feitas, simples assim, de coração aberto, de verbo solto. Não falemos de
regionalismos, porque a região em nós onde mora a sensibilidade e beleza não vê
fronteiras nem linhas que dividem estados, países, planetas. E se a gente se
ajeita matreiro num imaginário terreiro à luz da lua pra dançar, com quem nosso
deseje quiser, o forró açoitado de “Forrodá” com seu espírito lúdico e
nostálgico (desce, Gonzaga!), se entrega também à singeleza e pegada poética de
“São João”, que mesmo sem a aparelhagem acústica nordestina, traz lampejos do
Nordeste que nos forma e fortalece. Com melodia acalanto, Túlio canta com sua
voz frágil, dessas que pedem pra ser adotada, “Faço dupla com o luar pra cantar
essa canção/catavento na pinguela vai soprando a estação/Minha prece ilumina o
baralho da solidão”. Assim como se rende também à candente “Nanquim”, de uma cristalina
melodia, polida por uma pungente sanfona, na qual o piauiense aconselha: “Vai
cantador ser canto e voz amiga/Ser nanquim nos lençóis dessa nação”.
Ouça São João:
E apois a voz que nos leva ao sertão das almas e que brada
contra a morte de mangueiras, jaqueiras e coloca o preconceito contra a parede
faz de Batente de Pau de Casarão dessas coisas boas de ouvir e se apaixonar.
Porque vem lá do Nordeste e do Norte, nas parcerias de Túlio e em outros tantos
compositores, essa ainda pouca conhecida MPB, essa Música Plural Brasileira que
se mistura e se investe de leveza, sinceridade e dessa poesia e melodia rococós
que atingem em cheio nosso coração como flecha sorrateira, como quindim que
anestesia a língua. Essa música que não busca modismos e que é ponta de lança
de um Brasil singular, que acende e reata parte de nosso poderoso DNA. Túlio é
nessa sua obra, assim como já havia ensaiado no belo Eu Venho Vagando no Ar
(2010), como uma festa de São João de fogueira alta, colorida de balões que fazem
mágica na imensidão do céu noturno, rica de significados e que me deixou assim,
de coração mole, nessa resenha que beira (ou será que se afunda?) a sofreguidão
e o romantismo. E se somos assim, com essa alma lusa que também, como o
Nordeste, nunca sai de nós, que nos deixemos ficar sob o batente desse casarão
construído por esse talentoso musico de Brasília.
Cotação: Bom
Pra baixar: http://tulioborges.com/#batente