sexta-feira, 17 de abril de 2015

Renda-se a este presente



Abra os olhos: chegou o Chá de Boldo pra curar as mazelas
Diletantismo não é um substantivo qualquer. É daqueles porretas. Adoro o seu significado porque nele está entranhado aquela força vital que nos coloca acima da superfície das coisas. E como coisas são só coisas, como diria o grande paraibano Chico César, valorizar o que não é apenas o concreto, mas o abstrato da vida é uma arte deliciosa que nos faz mais humanos. Por isso acho um belo acerto o que Michaelis diz em seu dicionário sobre o tal substantivo: “filosofia de vida que coloca, como condição prévia à ação, o prazer e o capricho pessoal.” Essa definição somada à outra que diz que o diletante é aquele “entendedor ou apaixonado de uma arte ou a ela se dedica por gosto, especialmente à música”. Ou seja, sejamos preciosos e busquemos o prazer naquilo que dedicamos com paixão e com espiritualidade, colocando aqui principalmente a nossa assinatura que é única e intransferível. E essa é a grande essência de Presente(2015), o terceiro e efervescente trabalho do coletivo Trupe Chá de Boldo.



Eu que sempre fui a favor do diletantismo, vejo nessa busca caprichosa de uma assinatura própria, o autoral no seu sentido mais lato e não apenas no discurso ôco do roqueiro de garagem, uma prática altamente saudável e louvável. Até porque essa história de “a muriçoca soca, soca, soca”, hit de verão do litoral nordestino e além que infernizou nossos ouvidos na transição de 2014 para 2015 é de uma indigência apocalíptica. Presente é um antídoto para essa pobreza musical, que existe até pela falta de outras referências musicais e que insiste em arrastar a massa atrás como um trio elétrico frenético nas ruas de Salvador. A Trupe Chá de Boldo vinha num exercício experimental, fruto de um trabalho laboriosamente coletivo, desde Bárbaro(2010), aprofundado com louvor em Nave Manha(2012). Nas letras manhosas e nas melodias sinuosas impregnadas pelo espírito de cada um dos 13 (isso mesmo, 13!) integrantes dessa big band paulista. E o que é melhor, 13 músicos com estofo musical para enriquecer as composições de um álbum que prima pela diversidade de ritmos e referências.


Na capade Presente: os treze da banda em surreal formação
Gustavo Galo, Ciça Góes, Felipe Botelho, Rayraí Galvão, Gustavo Cabelo, Julia Valiengo, Guto Nogueira, Pedro Gongom Manesco, Leila Pereira, Marcos Grinspum Ferraz, Rafael Werblowsky, Remi Chatain e Tomás Bastos, a Trupe faz um som que muitas vezes desrespeita o arrumadinho. Lembram, de forma menos radical, outros diletantes do universo pensante paulistano que perpetraram, na década de 80, o impagável grupo Rumo, com seu canto falado, vide Luiz Tati, Ná Ozzetti e Gal Oppido entre outros marginais entre marginais(desculpem o rótulo), professores de alguns dos integrantes da big band. Deitados em uma cama sonora de arranjos sofisticados, um dos grande trunfos do disco, a turma do Chá de Boldo desarruma os lençóis do trivial com melodiais de ritmo quebrado, como em “Fogo, Fogo”, que se incendeia lá pelo meio em brincadeiras atonais, ou na atmosférica “Moremáximo”, em que jogam com a riqueza e sonoridade de nosso léxico entrelaçado com a língua de Shakespeare num beijo de língua: “O amor é o máximo/I want more/o amor é um maço/I want more/Mormaço é pouco/ I want more/Amor”. Humberto de Campos adoraria. 

E tem ainda essa riqueza de ritmos que foge do neo-psicodelismo, como já tentaram enquadrar o som dessa trupe afogueada. Treze músicos com liberdade criativa para espargir seus gostos e tesões musicais é muito mais do que isso. Como assumem sintomaticamente na composição “Uma Banda”: “Uma banda grande é demais/não cabe num elevador/ não cabe num camarim/Não cabe num estúdio/Não cabe nos Jardins/não cabe assim”. Não cabe em definições nem em cabeças estreitas. O bom mesmo é abrir a mente e se deixar levar pelo presente musical oferecido. Abra o pacote e se refestele. Presente é rock, é folk, é jazzy, é afoxé, é também psicodelia, é mistura afortunada de batuques e metais, é, principalmente, uma suingada banda brasileira pela inteligência com que regurgita tantas influências. “Cabe só onde tem tesão/uma banda grande é demais”, define o grupo da melhor e mais objetiva maneira possível.

Por isso, a manha pra se ouvir Presente é estar preparado para o que der e vier. E isso é puro lucro, pode ter certeza. Na audição, leve as letras inteligentes consigo, aconselho. A manha é não se incomodar com a estranheza sonora e impactante de “Jovem Tirano Príncipe Besta”, assinada por um compositor de fora da banda, o maranhense Negro Léo, de bela e malemolente melodia, em contraponto ao texto feroz.  É se adequar a acachapante confidência de “Aos meus amigos”, incluindo a sintonia sentimental instigada pela letra: “Salve o amor, salve a paixão/ Salve o cantar de um coração/ Eu sei que mesmo sem saber, um dia eu vou voltar a ver”. É se acomodar, sem medo de ser feliz, ao bom humor exposto visceralmente em duas ótimas canções que nos levam à colocação feita no início do texto. Na anti-ostentatória “Esse não é o meu tesão”, onde tiram onda inclusive da sonoridade funkeira carioca, “Eu não sou o seu tesouro/Eu não sou o seu milhão/Eu não sou seu caviar/Eu não vou pro seu carrão”. E na definitiva “Diacho”, na qual curtem com a cara dos manés de shopping que babam por grifes: “Diacho, pra que tanto Dior/Pra que tanto Armani no armário” pra sugerir depois: “Se o melhor da vida a gente faz sem renda/Se renda ao calor, se renda”. Afinal, como dizia o grande paraibano, coisas são só coisas. Enfim, se renda ao diletantismo desse presente do Chá de Boldo.

Cotação: Ótimo

Baixe o disco em www.trupechadeboldo.com 

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Fortaleza de pedras ásperas



O Cidadão Instigado retorna cada vez mais autoral e intenso
Quando deixei Fortaleza no início dos anos 80, via a cidade grande com olhos miúdos. De guardador de sonhos. Olhos ainda inocentes resguardados pelo manto generoso das amizades, pelo calor da família e pela utopia adolescente de ser o cara mais feliz do mundo dali por diante. A Praia do Futuro, aquela na qual me deitava de cara pro sol quarando, besuntado em óleo de avião(bronzeador popular na época), era então nostalgicamente a do futuro. E tudo o mais parecia algo que, pensei ludicamente, nunca perderia quando um dia retornasse. E a longa viagem atrás de minha formação humana e profissional, que me tornou um sujeito melhor, pelo menos um pouco melhor, acredito, me fez ver, anos depois, que a cidade grande transmudou-se feroz, ameaçadora, diante dos meus olhos que também se agigantaram. 


Vi esse susto e desencanto refletido na canção "Fortaleza”, que dá nome ao mais recente trabalho dos cearenses do Cidadão Instigado, nessa visão crua exposta num álbum com a mesma incrível e fascinante carga autoral, já esperada em se tratando de Catatau e sua trupe, que faz desse lançamento uma obra a se comemorar. A cidade do garoto e de seus amigos, que cresceram no bairro classe média da Varjota foi descaracterizada pelo crescimento desenfreado, que cavalgou na multiplicação de shoppings e arranha-céus que esconderam a visão do mar e fizeram sombra nas anuviadas cabeças dos cidadãos. “A Elite foi pros prédios e o povo sem perceber que a Fortaleza bela ninguém mais podia ver/Minha Fortaleza réia o que fizeram com você?”, canta Catatau em seu misto alucinado de repente e rock.

Capa do novo disco da banda cearense: tijolos em desordem
A percepção quase pueril e objetiva do cantor e compositor, essa vontade diáfana feito sonho de reencontrar o passado no presente, essa nostalgia guia o leme que nos faz marolar no mundo árido do Cidadão Instigado. A aridez, a estranheza do som vem de uma leitura personalíssima da vida e da música, de versos quase concretistas, que nos remete a um tempo em que o artista ousava criar sem amarras, em que filosofar era um exercício tão corrente quanto vão, em que os músicos viajavam na psicodelia sem qualquer culpa buscando acordes etéreos. Tem ecos claros dos anos 70 em Fortaleza, daquele período em que a cidade mirava o mar num diálogo solene, aberto e não truncado. Daquele tempo em que o rock em sua vertente progressiva conquistava mentes e corações, como os dos então garotos Catatau, Regis Damasceno, Dustan Gallas, Clayton Martin e Rian Batista.

O discurso abusado de Fortaleza que devaneia em versos impertinentes baila harmonicamente com o rock, com solos e riffs de guitarras com a mesma valorização que era dada a esses instrumentos pelas lendas Led Zeppelin, Pink Floyd, Procol Harum, Black Sabbath e tantos outros viajandões que não saiam das vitrolas dos cidadãos instigados. É como um álbum feito nos anos 70, mas com arremate desse louco século XXI. Essa pulsante nostalgia fica clara em composições como “Besouros e Borboletas”, com seu viés psicodélico e guitarra cortante, tocada por extrema competência pelo sempre iluminado Catatau, autor de quase todas as canções do álbum. Os longos solos de cordas, encaixados em arranjos bem trabalhados, são belos respiros instrumentais para os versos cheios de mistério da música. Mesma química que catapulta “Green Card” como uma das melhores do CD. “Vejo as pessoas espalhadas pelo muro. Seus pés de tijolos dificultam seus impulsos. Cenas feitas de silêncio e ódio”, canta de seu jeito único o irrequieto Catatau.

Se em O ciclo da dê.cadência (2002), O Método Túfo de Experiências (2005) e UHUUU! (2009), trabalhos anteriores do Cidadão Instigado, os cearenses já perseguiam um som próprio e intransferível, dessa vez, em Fortaleza, eles exageraram. Sem perder o tom e a magia. Deixaram um pouco de lado os timbres eletrônicos que pontuavam aqui e ali as melodias e se agarraram ao rock da maneira mais visceral possível. O riff de “Ficcão Científica” é uma jóia que se lapida a cada escutada. O peso e a batida de “Quando a Máscara Cai”, pegando carona no nome da banda, instiga os ouvidos com seu frescor e referência a um velho personagem criado pela banda no EP de 1998, o Zé Doidim, que no Ceará, pra quem não sabe, é como chamamos aqueles sem nocão que batem de cara com a vida sem medo das consequências.

“Quando a Máscara Cai”, traz ainda outra característica alentadora de Fortaleza, o disco, a mudança inesperada de ritmo, que faz do álbum uma gangorra de emoções e surpresas. Até naquelas canções, que parecem ter saído de um repertório brega, lado que Catatau e seus parceiros assumem sem vergonha,  e não inspirariam viradas bruscas, caso das baladas “Dizem que sou Louco por Você” e “Os Viajantes”, essa mudança de sonoridade dentro da música acontece arrebatadora. Difícil, enfim, rotular, definir um som que escapa do modismo, do lugar comum e que consegue se revolver num turbilhão criativo que só uma mente lúcida e lúdica como a de Catatau e os meninos instigados poderia construir. Não espere flores, nem a mesmice. A Fortaleza do Cidadão Instigado é uma construção de pedras ásperas, de arquitetura ousada e repleta de calabouços e quartos onde moram seres pensantes, formuladores de sentimentos contraditórios e pulsantes. Como uma Fortaleza que não existe mais e que hoje só vive na cabeça de um menino que na verdade nunca abandonou seus olhos sonhadores.

Cotação: Ótimo

Download do disco em: www.cidadaoinstigado.com.br

Leia também em: www.todoouvido.blogspot.com


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